25 setembro, 2009

E se eles soubessem falar?

 

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Você já viu um matadouro? Você já sentiu o cheiro do sangue quente do animal quando a faca corta a artéria e o sangue jorra, enquanto o animal grita, às vezes até defeca de dor? Você já viu como são criadas as galinhas em galinheiros apinhados, e que elas não têm nem espaço para dar uma corrida? Você já brincou com um porquinho e viu como ele é inteligente como um cachorro?

Se você vem de uma área rural ou semi-rural, você certamente se lembra daquele dia em que os “homens da casa” – em geral seu pai, mais os tios, o avô, algum vizinho – se juntaram para “matar um porco”. Se você foi como a maioria das crianças, você saiu correndo e tapou os ouvidos para não escutar os urros do animal. Talvez você tenha dado comida para aquele porquinho, e você o viu crescer. Em algum lugar do seu cérebro, você guardou a informação de que aquele porco ia ser comido um dia, talvez no Natal, talvez na Páscoa. Mas, pelo menos na sua primeira matança de porco, você não sabia exatamente o que isto significava.

E o dia chegou, e os homens vieram, faca, machado, martelão em punho, dominaram o animal a qualquer custo, e mataram o bicho. A gritaria da agonia do porco encheu os ares, mas as pessoas se sentaram, satisfeitas, observando o sangue jorrar, saboreando o banquete mais tarde, feito com as partes do animal. E aqueles porquinhos – os famosos leitões – que mal sabem de nada, não viveram, praticamente, e são facilmente mortos e depois servidos, de corpo inteiro, no centro da mesa, como uns defuntinhos que são devorados pelas pessoas? Ainda tem os gaiatos que colocam uma maçã na boca do porquinho, o qual com certeza jamais comeu uma durante sua vida.

Esta cena da matança era mais comum logicamente quando os supermercados não eram abundantes (e quando nem existiam). Quem quisesse comer carne, que caçasse seu animal, ou que criasse e matasse. As crianças que começassem a se acostumar com a gritaria. Se você reconhece sua experiência nesta descrição, sabe do que se trata. E, muito provavelmente, depois de enxugar as lágrimas, você foi convocado a almoçar seu bichinho e reconhecia as partes do animal.

Quando foi que a gente deixou de sentir o horror, de se comunicar com o medo que aquele animal sentiu ao ver – ou pressentir – que aqueles homens vinham para matá-lo?

Muitas pessoas, depois de presenciarem a morte de um animal “de corte”, decidem que não querem mais comer carne, porque sabem que aquele bife, aquela costelinha, uma vez estavam numa criatura inocente, a qual deu a sua vida para que os seres humanos se alimentassem. Não: o animal não deu a sua vida. A sua vida foi tirada dele. Agora imaginem um matadouro, em que centenas, milhares de animais são mortos todos os dias.

Hoje, muitos poucos vêem um matadouro, e a maioria deles está tão mecanizada que os animais vão andando (os bois e vacas, pelo menos) por um corredor estreito que os leva até uma “porteira” que impede que o animal se mova. Um “martelo” eletrônico com um “prego” gigante bate na cabeça do animal, que cai ali mesmo, morto.

Para a maioria de nós, a carne é somente um produto que compramos no mercado, ou no açougue, e já vem cortada, em pedaços, distante da confusão sanguinária da morte.

Muitos não conseguem identificar aquele pedaço de picanha, de costela, de fígado, com um ser que, um ou dois dias antes, caminhava, olhava para o céu, sentia a chuva, respirava, como qualquer um de nós. O espetáculo da imolação sem pena dos animais nos é vedado. E seguimos comendo, sem pensar. Sem pensar.

Os animais têm alma?

Os animais sofrem?

Os animais sabem quando vão morrer?

As baleias e golfinhos têm um sistema complexo de comunicação.

Os nossos cães dão mostras de alegria quando nos vêem. Abanam o rabo. Alguns até sorriem.

Os pássaros sabem prever o inverno e as chuvas: fazem seu ninho de maneira que fique abrigado. E eles não foram à escola nem estudaram meteorologia.

E ser vegetariano não é sinal de santidade não. Quer dizer, assim como em todas as áreas, tem de todo tipo de gente entre os vegetarianos. Por exemplo, se diz que Santo Agostinho era vegetariano. Mas também existem documentos que supostamente mostram que Hitler era vegetariano mas que, como escreve Bee Wilson, “o seu nojo de carne não tinha nada a ver com pena pelos animais.”[1] Isaac Newton era vegetariano.

Também Thomas Edison. E Leonardo da Vinci. Não sei por que eram vegetarianos.

Todas as mudanças são difíceis. Para algumas pessoas, a ideia de não comer mais carne é aterrorizante, mesmo quando estão sofrendo de alergias, e têm problemas de peso, colesterol alto, e outros problemas causados pela dieta incorreta. Talvez para muitos, o ideal seja escolherem um dia da semana e não comer nenhuma proteína de origem animal. Não é impossível. De uma vez por semana, se pode tentar passar a dois dias. E assim por diante.

Os porquinhos, bezerros, bois, vacas, carneiros, galinhas, frangos, peixes, camarões, etc., agradeceriam se soubessem falar. Mas, será que eles já não falam? Como disse o filósofo Wittgenstein, “Se um leão pudesse falar, nós não o entenderíamos.” De fato, os animais falam, falam, expressam seu terror, seu sofrimento, sua dor. Mas nós não os entendemos.

 

 

Notas

[1] Wilson, Bee (October 9, 1998) “Mein Diat. New Statesman (London), 127 (4406): p. 40.

[2] Para uma discussão curta mas informativa sobre os efeitos de uma dieta vegetariana, consulte http://www.vegetarianismo.com.br

20 setembro, 2009

“A Cabra ou Quem é Sylvia?”

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Recentemente fui assistir ao espetáculo teatral A Cabra ou Quem é Sylvia?, do dramaturgo americano Edward Albee. Nessa peça, o casal bem-sucedido Martin e Stella, vividos por José Wilker e Denise Del Vecchio na adaptação brasileira, dirigida por Jô Soares, veem sua aparente cumplicidade ser rompida quando Martin encontra uma amante: Sylvia, uma cabra. Confesso que não cheguei a ler o texto de Albee e baseio minhas observações exclusivamente na peça, mas posso dizer que não gostei.

Entre o absurdo e a tragédia, o espetáculo transforma riso em inquietação. Referências a pedofilia, zoofilia e incesto – algumas cenas são bem pesadas – incomodam o espectador em busca de diversão antes da pizza. E está aí o principal mérito do texto: é expor a perda da razão da sociedade contemporânea.  Ciente do potencial de seus atores, Jô Soares evidencia neles a reviravolta da trama. Certo é que o tema da zooofilia e do bestialismo foi sempre visto como grande tabu na maior parte das sociedades ocidentais, e ainda suscita opiniões díspares e discussões acaloradas.

Infelizmente, essas práticas sempre existiram. Exemplos que comprovam essa assertiva podem ser vistos em manifestações artísticas datadas de mais de 25.000 anos na França, onde pedaços de ossos retratam cenas de interações de humanos com felinos. O biólogo Midas Dekkers, autor de Dearest Pet (London: Verso, 2000), relata que egípcios mantinham relações com alguns animais domésticos, babuínos e até mesmo répteis. Os gregos imortalizaram esse tipo de comportamento no mito em que Zeus aparece para suas concubinas na forma de um touro, de uma serpente, de ganso, cavalo ou outros animais e com elas mantinha relacionamento sexual. Constantino, o imperador que converteu Roma ao Cristianismo, era apelidado de “o sodomizador de vacas” (cow-fucker). Outros tristes exemplos na mesma linha poderiam ser citados, como é o caso dos julgamentos de animais, principalmente na Idade Média.

Os julgamentos de animais, bem observa Graeme Newman (The Punishment Response, Philadelphia: J.B. Lippincott, 1978), eram apenas uma faceta de uma ampla rede de controle social construída pelas autoridades na tentativa de dominar e estabilizar as relações entre a sociedade e o mundo natural. Os animais representavam um desafio não menos relevante que o oferecido por outros grupos marginais, como mulheres, hereges e ateus. O elo entre essa prática e a religião era, pois, intenso e importante demais para não ser notado. A proximidade conceitual entre os julgamentos por “bestialidade” e “bruxaria” era enorme e, muitas vezes, os dois se interpenetravam pelo rompimento das “leis naturais”.

A bestialidade era tida como o pior entre todos os crimes sexuais. Para se ter uma ideia, foi punida com pena capital de 1534 até 1861 na Inglaterra. Entre nós, ocorria idêntico fenômeno. Até o século XIX, de acordo com as disposições penais das Ordenações Filipinas, consoante anteriormente verificado, o crime de “sodomia” com animais era também punido com a pena capital. Segundo um moralista do período dos Stuart, a bestialidade era tão severamente punida pelo fato de que transforma o homem no próprio bicho, tornando-o um exemplar da criação bruta. Essa concepção de punição severa do enlace homem/animal tem origens bíblicas. No Antigo Testamento, no Levítico 18, 23-24 e Deuteronômio 27, 21 há a expressa proibição da prática, enquanto no Êxodo 22, 18 e Levítico 20, 15-16, fica clara a cominação divina consistente na pena de morte para os praticantes, homem e animal.

Há notícia de que em 1622, em New Haven (EUA), um cidadão de nome Potter foi condenado à forca, juntamente com seus oito animais domésticos, pelo crime de sodomia e bestialidade, o que também aconteceu em 1642, em Massachusetts (EUA), com Thomas Graunger.

Jonas Liliequist nos dá conta de que, entre 1630 e 1780, cerca de setecentos suecos foram efetivamente executados e que outros tantos foram condenados a duras penas religiosas e a trabalhos forçados por este tipo de delito (Peasants Against Nature: Crossing the Boundaries Between Man and Animal in the Seventeenth and Eighteenth-Century Sweden. Focaal: Tijdschrift voor Anthropologie 28, 1990). Era crença difundida, até o início do século XVIII, de que era possível a fecundação e o nascimento de filhos entre homens e animais. Assim é que a bestialidade era tida como a causa do surgimento de “monstros” abomináveis. Esse tipo de cópula antinatural, dizia William Ramesey, produziria um monstro, contando em parte com os membros do corpo humano e em parte com os do animal.

Os dados colhidos das cortes suecas revelam que outro não era o destino dos animais, usualmente mortos na qualidade de cúmplices com a finalidade de obliterar a memória do ato ultrajante. Em 1940 um homem e três vacas foram queimados vivos numa fogueira, em Pont-à-Mousson, pela prática de bestialidade.

Já nos séculos XIX e XX, sempre foram comuns os relatos desse tipo de interação, principalmente nas áreas rurais. Há autores que afirmam que parte da explicação se deve ao fato de que o meio rural é geralmente mais conservador, dificultando o relacionamento sexual antes do casamento. Todavia, acredito que a explicação para a ocorrência desse tipo de fato é bastante complexa, e envolve fatores sociais, como os apontados, mas também matizes psicológicos dos mais diversos, até porque os relatos não se cingem a essas áreas geográficas específicas.

De acordo com o acadêmico israelense Hani Milestski (Understanding Bestiality and Zoophilia, Bethesda, MD: East-West Publishing, 2002, 273 p.), uma das maiores autoridades mundiais no assunto, as interações sexuais com animais são de variadas intensidades e formas, daí a razão de diferentes nomes para diferentes práticas como a sodomia, a zoossexualidade, a bestialidade e a zoofilia.

A despeito das diferenças técnicas entre as práticas supramencionadas e das diferentes explicações psiquiátricas para as diversas ordens de motivação, fica bastante claro que em todos os casos e situações de orientação sexual voltada para animais não humanos há a utilização do animal como instrumento para a satisfação de um desejo sexual.

A polêmica sobre o assunto foi reacendida recentemente com a publicação de um artigo do filósofo australiano Peter Singer intitulado “Heavy Petting”, no qual sugere que não haveria razão para a recriminação da conduta sexual com animais caso ela fosse “mutuamente satisfatória”. De acordo com Singer, o tabu relativo ao sexo com animais pode ter sido originado como parte de uma rejeição mais ampla com relação ao sexo não  reprodutivo (homossexualismo, fetichismo etc.). Para o autor, a persistência dessa repulsa revelaria a intenção de nos diferenciarmos, até mesmo eroticamente, dos outros animais. Singer afirma que há cerca de um século, quando Freud acabava de publicar seu Três Ensaios sobre a Sexualidade, o escritor Otto Soyka também publicava Beyond the Boundary of Morals, obra polêmica que contestava a proibição do sexo não convencional e não reprodutivo. Para Soyka e Singer, o sexo com animais só deveria ser proibido e punido quando envolvesse a crueldade.

Com a devida vênia, sustento posição contrária ao dos autores supramencionados. Acredito que a moralidade está fundada em dois princípios básicos, quais sejam o princípio da igualdade (refinado para a posição da “igual consideração de interesses”) e o princípio da analogia (ou merecimento). O primeiro afirma, sinteticamente, que na ausência de diferenças morais relevantes, os interesses, ainda que de espécies distintas, devem ser igualmente considerados e respeitados. O último pressupõe que a quantidade de consideração moral não pode ser diminuída em razão de fatores ou circunstâncias que não podem ser controladas ou atribuídas ao indivíduo. Esses princípios andam de mãos dadas, pois humanos ou não, somos destinatários da mesma consideração que qualquer outro ser senciente deveria possuir. As diferenças factuais entre as espécies não podem ser controladas pelos indivíduos, e por essa razão são moralmente irrelevantes.

Ao que tudo indica, a interação sexual entre homens e não homens violaria esses princípios, na medida em que os últimos são incapazes de consentir com essas práticas (tais como outras categorias marginais como crianças, senis, pessoas portadoras de doenças mentais severas etc.). Acredito, portanto, ser equivocada a linha de pensamento que advogada a proibição desses atos somente quando houvesse lesão física (crueldade) aos animais envolvidos. Mesmo que em tese não houvesse esse tipo de lesão, haveria o abuso, categoria esta que inclusive consta do tipo penal do art. 32 da Lei n. 9.605/98. De fato, o conceito de abuso vai além da mera lesão corpórea, abrangendo também a lesão psíquica derivada de um ato de violência. A meu sentir, portanto, os atos sexuais cometidos contra animais são, inegavelmente, atos forçados, de violência, e por esse motivo devem receber a adequada reprimenda moral e jurídica